Escreveu o etnomusicólogo Armando Leça no longínquo ano de 1940 que:
“a música popular, aquela cujas raízes mergulham na tradição, é expressão etnográfica de incomparável valor documental, porque se identifica com a paisagem, com a poesia, com a fonética, com os costumes, com o carácter diferenciado dos povos e das regiões.”
Esta definição, uma com quase oitenta anos, parece estar cada vez mais longe do que hoje se entende por música popular, uma amálgama mais ou menos caótica de elementos musicais arrancados aos seus contextos de origem, propagando uma miscigenação de “músicas do mundo” para consumo de públicos cada vez mais desligados de ligações perenes a territórios específicos.
Perante estas dinâmicas contemporâneas em curso, como aquelas em que as formas culturais de massas tendem a nivelar tudo à sua frente, a singeleza, o lirismo e o “espírito do lugar” de muitas das canções populares do Portugal rural servem de perfeito contraponto e dão-nos lições que vão muito para além dos seus elementos estritamente musicais.
O espírito do lugar é um conceito totalmente ajustado aos temas musicais do Grupo Etnográfico de Trajes e Cantares de Várzea de Calde, os quais cobrem na sua totalidade as tipologias identificadas por muitos dos estudiosos que analisaram os cancioneiros tradicionais da Beira Alta:
- Monodias (cantares a uma voz), compreendendo modas de embalar, modas de roda, modas de trabalhos rurais, romances, etc.
- Modas coreográficas, de regiões limitadas ou comuns a várias províncias, como modas de romaria, modas de roda etc.
- Modas corais (a uma, duas, três e quatro vozes), de expressão regional e de formas harmónicas plurisseculares, sejam cânticos sacros ou profanos, como modas calendarísticas (de determinados periodos do ano), coros de romeiros, etc.
O Grupo Etnográfico de Trajes e Cantares de Várzea de Calde (freguesia de Calde, município de Viseu) constitui um exemplo acabado de valorização das tradições mais arreigadas de uma comunidade, fazendo-o de forma singular, quer pela demonstração exemplar de um cancioneiro especificamente ligado a uma das atividades mais emblemáticas da aldeia, a sementeira e processamento da fibra do linho até ao tear, quer pela panóplia de cantares rurais que refletem modos de articulação holística entre paisagem, trabalho e relações sociais do mundo rural.
O privilégio que nos foi concedido de podermos gravar em diferentes momentos uma parte importante do cancioneiro deste grupo etnográfico é tão mais tocante quanto o historial que o mesmo encerra, um com mais de setenta anos de continuidade, tendo sido na maioria desse período dirigido por uma habitante da aldeia, Virgínia Maurício, a qual com a tenra idade de dezasseis anos foi convidada a dirigir o grupo por saber ler e escrever. A mesma continua hoje, já com mais de setenta anos de idade, a levar a bom porto a missão que lhe foi concedida, com entusiasmo, intuição e capacidade de liderança únicas.
DOCUMENTOS EM ARQUIVO